Quem sou eu?

Danka Maia é Escritora, Professora, mora no Rio de Janeiro e tem mais de vinte e cinco obras. Adora ler, e entende a escrita como a forma que o Destino lhe deu para se expressar. Ama sua família, amigos e animais. “Quando quero fugir escrevo, quando quero ser encontrada oro”.

Eu, leitora: "Descobri que era bipolar, por isso tinha compulsão por sexo e compras"

Elisa acreditava que passar da euforia à depressão era normal. Medicada erroneamente com antidepressivos, seu quadro foi piorando, mas nas fases de excitação sentia-se tão genial que não levava à sério a patologia. Até que teve um surto em plena rua, foi socorrida por bombeiros e, finalmente, diagnosticada de modo correto por uma psiquiatra. Ela revela aqui os bastidores dessa doença que promove uma perigosa gangorra emocional


eu, leitora, setembro (Foto: Shutterstock)
A sirene dos bombeiros que me conduziram ao hospital, naquela tarde de fevereiro de 2001, ecoam nos meus ouvidos até hoje. Eles foram chamados porque, na hora do almoço, em plena rua, eu me senti investida de uma missão especial: achei que era uma enviada da Virgem Maria e devia fazer o bem. Justo eu que sou agnóstica, quase uma ateia! Sob o efeito do delírio, fui a uma praça e comecei a distribuir aos transeuntes as moedas que tinha na bolsa. Não satisfeita, entrei na fonte e comecei a oferecer também as notas. Não sabia porque estava fazendo aquilo. Talvez porque alguns dias antes eu tinha assistido a Doce Vida, o filme de Fellini, em que Anita Ekberg e Marcelo Mastroianni se encontram na Fontana de Trevi, em Roma. As notas que eu tinha eram poucas, então fui até o caixa eletrônico e retirei tudo o que podia, uns 2.700 reais. Sentia-me bem doando a todos o que eu possuía. Em pé, dentro da fonte, com água até as canelas, atirava as notas e cantava baixinho, até que os bombeiros chegaram...

No pronto-socorro, eu não tinha consciência de que estava em um atendimento psiquiátrico.O delírio continuava. Na minha cabeça, eu me encontrava em Jerusalém, em um estúdio cinematográfico, para filmar junto com o diretor Martin Scorsese o Monte das Oliveiras. Não tenho a menor ideia de onde tirei tal enredo. Nunca trabalhei o cinema nem viajei para Israel, na época eu era economista em um banco. Naquele ia, aos 36 anos, estava tendo o maior surto bipolar e minha vida. Graças à minha hospitalização, finalmente encontrei uma psiquiatra que diagnosticou a bipolaridade. Desde então, tomo remédios que regulam meu humor, o que deverei fazer pelo resto da vida para não ter recaídas.
ALTOS E BAIXOS
Ao longo desses anos, aprendi que há duas facetas nos transtornos bipolares: meses de euforia seguidos de meses de depressão. Eu vivia isso, mas não me dava conta de que era um sintoma. Minha crise naquela praça foi o pico de uma de minhas fases de euforia, mas esse não era o meu cotidiano. Antes do diagnóstico, alternava longos períodos de exaltação, que se estendiam de dois anos e meio a três, durante os quais tinha uma incrível energia e uma autoconfiança fora do comum. Nesses momentos, me permitia várias audácias, inclusive profissionais, mas não enlouquecia. Passada essa fase eufórica, caía em uma depressão brutal durante um período de seis a dez meses, quando sentia um profundo desprezo por mim e um cansaço tão intenso que tudo se tornava extremamente difícil. Não me interessava por coisa alguma e, quando podia, dormia o dia inteiro. Porém, nada de especial havia acontecido em minha vida que pudesse justificar essas reviravoltas. Hoje, eu sei que elas são típicas da doença e tenho mais informações sobre a bipolaridade. Mas, no começo dos anos 2000, quando o surto aconteceu, não havia tanta clareza sobre o assunto, nem entre os especialistas. Tanto que alguns médicos com quem me que consultei na fase de desânimo e apatia me prescreveram antidepressivos em doses cavalares. Foi um equívoco, claro, e foram eles que acabaram me precipitando a entrar em tantas (e tão fortes) fases eufóricas, cada vez mais violentas. Aprendi depois que são os estabilizadores de humor os medicamentos mais indicados para o tratamento do transtorno bipolar, e não os antidepressivos.

Entre esses dois extremos da gangorra emocional, eu vivia um período de latência mais brando, com duração média de dois a três meses, uma espécie de mar calmo, em que não me sentia nem no fundo do poço nem exaltada. Depois o ciclo recomeçava, com dois ou três anos de hiperatividade e de bem-estar. Sim, fato de experimentar tamanho bem-estar é o que torna diabólica essa patologia, pois antes de chegar à agitação extrema, que me consumia muita energia e me esgotava, eu vivia uns meses de verdadeiro nirvana. Durante meus ciclos de quase três anos, minha existência se parecia com a de uma bailarina que dança cada vez com mais entusiasmo. Isso permitiu que eu enfrentasse os maiores desafios de minha vida profissional. Ambicionei e consegui cargos com os quais sonhara. No dia a dia, minhas responsabilidades nunca me paralisavam. Pelo contrário, quanto maior o desafio, mais me sentia animada, as eventuais dificuldades eram o meu combustível e eu me entregava ao trabalho.

ALTA VELOCIDADE
Dormia no máximo cinco horas e meia por noite e, assim que me levantava, já estava a pleno vapor. Minhas ideias brotavam. Eu conseguia dar conta de uma montanha de relatórios sem nunca duvidar de minhas competências nem me sentir cansada. Também enfrentava uma reunião após outra, sem jamais perder o fio da meada, sentindo-me sempre um passo adiante. Desse modo, ganhei rapidamente a confiança de meus superiores. Percebia que eles me viam como uma moça dinâmica que não tem medo de nada, sempre com uma resposta na ponta da língua. O problema é que a gente não fica eternamente, brincando com esse volume de energia fora dos padrões. É impossível sustentar o pique. Um dia, tudo se acelera, rápido demais, forte demais, e o lado emocional fica fora de controle. Foi o que aconteceu comigo. Antes do surto, vivi um período de aceleração em que perdi o pé e cometi muitas extravagâncias. Essa roda-viva começou alguns meses antes do episódio na fonte, quando eu estava completamente esgotada.


FORA DE CONTROLE
A essa altura, só conseguia dormir três horas por noite. Cheguei a me deitar vestida, para não perder tempo na manhã seguinte. Antes de ir para o banco, trabalhava durante três horas em minha casa. Eu verificava, de forma obsessiva, as cifras de cada quadro criado no dia anterior, ou editava o mesmo gráfico em vários exemplares, com tipografia e cores diferentes. Toda manhã, passava o aspirador no apartamento para que os fios do tapete ficassem na mesma direção. Essa hiperatividade coincidia com o auge da minha autoconfiança. Eu me tornei megalomaníaca e impunha minha presença em todos os lugares. No trabalho, mesmo quando não fazia parte de um projeto, ainda assim eu apresentava um plano, cheio de estatísticas. Achava que meus superiores estavam fascinados com minhas argumentações e competência.
Não via que estava sendo ridícula, que minhas ações escapavam ao meu controle e, sobretudo, que eu estava doente.


Na esfera pessoal, sentia uma necessidade obsessiva de agradar a todos. Sexualmente, era uma mulher devoradora, paquerando de forma obstinada um de meus colegas, mesmo que fosse apaixonada pelo meu companheiro. Depois, minha psiquiatra me explicou que isso é uma das consequências da doença: durante as crises, mais da metade dos bipolares apresentam comportamentos sexuais compulsivos. Na época eu seduzia para aplacar uma espécie de necessidade animal. Ia várias vezes até o mesmo bar para encontrar outros homens. É doloroso pensar nisso hoje, pois não era eu, meu temperamento é apaixonado e romântico. A mesma compulsão se aplicava às compras, eu saía consumindo qualquer coisa, a ponto de me endividar seriamente. Não consegui quitar as contas no prazo, cheguei a ficar como nome sujo na praça. Esse padrão se repetiu por toda a minha vida até o episódio da fonte. Saber que cometi tantos absurdos até aquele momento chega a ser insuportável. Fico muito mal só de lembrar.
Diante do quadro descontrolado da euforia, acho que minhas recordações das fases de depressão são quase mais “fáceis”. No entanto, minhas ideias sombrias me fizeram flertar com a morte. Sentia-me uma lesma inútil sobre a terra, era terrível! Sofria desesperadamente, mas também fazia os outros sofrer: minha família, meu marido... Só estou com meu companheiro, ainda, graças à minha psiquiatra. Quando fui hospitalizada, ele estava repleto de dívidas que eu acumulei e não suportava mais meus altos e baixos. Até esse surto especialmente violento, nós não tínhamos compreendido a gravidade da situação. Ele chegava a zombar, delicadamente, das minhas atitudes extravagantes. No máximo, achava que eu estava histérica ou envelhecendo mal. Precisei de um tempo para aceitar meu diagnóstico. Para mim, foi um grande alívio quando atores como Catherine Zeta-Jones e Ben Stiller revelaram que sofriam da mesmo mal, trazendo a público a doença. Fui demitida no banco, mas há cinco anos voltei a trabalhar meio expediente como professora de economia em uma instituição particular. Por causa dos medicamentos, não tenho mais a concentração necessária para assumir as mesmas responsabilidades profissionais de antes, eu teria medo de cometer alguma bobagem em minhas previsões econômicas e acabar prejudicando os outros.

PONTO POSITIVO
Quando me libertei de meus altos e baixos aterrorizadores, também perdi minha bela segurança – que, pensando bem, era fictícia – coma qual enfrentei minha vida com determinação durante anos. Dar esse testemunho, hoje, é importante, pois muita gente tem medo de procurar auxílio médico. O que entendi a duras penas é que ninguém precisa surtar da maneira que eu surtei para começar a se tratar. Meus amigos não saíram correndo porque eu tenho a doença, e meu companheiro não me abandonou. Pelo contrário, nosso relacionamento só melhorou. Aliás, esse é o ponto positivo de minha história de bipolaridade: sei hoje que ele não era fascinado pelos meus arroubos, ele me ama verdadeiramente, e continuou a meu lado.

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