Quem sou eu?

Danka Maia é Escritora, Professora, mora no Rio de Janeiro e tem mais de vinte e cinco obras. Adora ler, e entende a escrita como a forma que o Destino lhe deu para se expressar. Ama sua família, amigos e animais. “Quando quero fugir escrevo, quando quero ser encontrada oro”.

Vivo há anos com o homem que enganei pela internet!

A psicóloga Amélia*, 45 anos, namorou Pedro* pela internet sem contar que era 10 anos mais velha do que ele, mãe de um filho de 18 anos, e que estava acima do peso. Ao se apaixonar, entrou em crise e, disposta a acabar com meses de mentira, marcou o primeiro encontro ao vivo. Ele ficou assustado quando percebeu o engano, mas já estava envolvido também. Aqui, ela conta por que mentiu, como enfrentou preconceitos e diferenças para viver um grande amor que,  completa 10 anos

NA FOTO, A PSICÓLOGA E SEU MARIDO PEDRO (Foto: Arquivo pessoal)
“Era uma noite de quarta-feira como qualquer outra, dia 1º de setembro de 2004. Eu não sabia que minha vida ia mudar. Estava numa sala de bate-papo da internet, quando um homem que entrou como ‘Paulistano’ perguntou: ‘Vc quer tc?’ Já passava das dez da noite, o dia fora cansativo, mas topei. O papo fluiu e logo passamos para o MSN. Conversamos por uma hora e meia sobre assuntos banais, como as cidades onde morávamos, ele de São Paulo e eu de Porto Alegre. Ele não me perguntou sobre a minha aparência. Só queria saber se podia me telefonar. Quando atendi sua ligação, ele se empolgou: “Além de simpática e querida, você ainda tem uma voz linda.” Fizemos sexo virtual naquela noite, e em todas as outras, até nos conhecermos pessoalmente, o que levou um ano. Usávamos o telefone e o Skype, mas eu não ligava minha câmera. Não revelei meu nome verdadeiro ou idade. Não comentei que estava acima do peso, que era separada e tinha um filho de 18 anos – eu também tinha essa idade quando engravidei do namorado, com quem casei e vivi por dez anos.

Chegava a passar horas digitando com o Pedro e, após nosso encontro virtual, nunca mais entrei numa sala de bate-papo. Todo o meu tempo livre era para ele. Mas sabia o quanto era complicada a situação. Ele tinha 27 anos, eu 37. Menti que eram 32. Sempre fui gordinha e nunca havia me preocupado com isso até procurar o perfil dele no Orkut e descobrir que o Pedro era lindo, moreno, magro, e que suas ex-namoradas eram moças jovens, bonitas, e com muita grana. Meu mundo desabou. Meu filho me dizia: ‘Mãe, por que você não fala a verdade? Se ele não gostar de ti, é um idiota’.
Revelei meu nome, mas desconversava quando ele perguntava da minha aparência. Ele desencanava, mas depois voltava a perguntar. Decidi colocar uma foto falsa no meu Orkut. Era de uma morena, que tirei de uma revista. Coitado, ele ficou com essa imagem na cabeça, e assim acalmei sua curiosidade e continuei dando desculpas para não me mostrar no Skype.Outra diferença que nos distanciava é que Pedro vem de uma família rica, o pai colecionava automóveis antigos, ele morava na zona nobre de São Paulo. Eu moro em Alvorada, perto de Porto Alegre. Os meus pais são cegos. Minha mãe, de nascença, e meu pai, desde criança, por causa de uma sequela de sarampo. O curioso é que quando jovens, moraram em cidades diferentes e namoraram por carta... eu fiz o mesmo, só que pela internet. Ambos foram operários numa fábrica de fogões, depois meu pai teve uma banca de verduras e minha mãe virou dona de casa.
Meu pai me conseguiu uma bolsa em uma escola particular durante o Ensino Fundamental. Na faculdade, eu trabalhava durante o dia numa empresa de informática e vendia pastéis e cafezinho nos intervalos da aula à noite para pagar a mensalidade. Abandonei o curso de História pelo de Psicologia, perseguia o reitor para conseguir bolsas parciais. Só pude me formar aos 33 anos e fui trabalhar na clínica de uma professora e em duas escolas. Eu me separei do primeiro marido no fim da faculdade, tive outro namoro, mas trabalhava tanto que não dava tempo de sair e conhecer gente. Comecei a entrar nos chats, mas por pura distração. Não pensava em arrumar namorado na internet. Em 2004, as redes nem eram tão populares.
Estava há cinco anos sozinha quando Pedro entrou em minha vida. Depois de alguns meses, forcei a barra para ele assumir que era meu namorado. Ele não admitia nem falava de amor. Dizia que, para isso, eu teria que conhecê-lo pessoalmente, o que eu relutava. Até que uma noite, ele colocou uma música linda do Chico Buarque para ouvirmos juntos. Perguntei o nome da canção e ele me disse: ‘Eu te amo.’ Passávamos as tardes de domingo no Skype (minha câmera continuava desligada). Líamos juntos, ele me enviou pelo correio o "Blecaute", do Marcelo Rubens Paiva, que falava de São Paulo. Apesar das diferenças, havia muita afinidade entre nós. Quando falávamos sobre visão de mundo e sentimentos, éramos parecidos. Também adorávamos jogar xadrez pela internet. Estávamos apaixonados, e eu angustiada por causa das minhas mentiras. O Pedro tinha uma tia que brincava que eu devia ser um ‘gauchão de bombacha’.
Amava o Pedro, mas se a gente se encontrasse, iria decepciona-lo, e continuar mentindo era imperdoável. Entrei em crise, passei dias deprimida até decidir ir para São Paulo. Ele queria me pegar no aeroporto, mas combinei de esperá-lo no hotel e de deixar a porta do quarto aberta. Já era de noite quando ele chegou, e eu o recebi com as luzes apagadas.

Estava vestida de modo casual, sentada na cama. Ele se aproximou e tentou me beijar. Eu impedi. Ele viu que havia algo errado. Então, acendeu as luzes. Até esse momento, sua referência de mim era uma foto falsa. Ficou chocado, mas não disse nada. Ao contrário, foi muito gentil, me convidou para sair e me deu presentes – duas bonecas que ele sabia que eu adorava na infância,mas nunca havia ganho. Abri os pacotes e lá estavam meus brinquedos. Aquilo me enterneceu, mas ele viu que eu estava abatida. Depois do jantar, voltamos ao hotel. Eu estava muito nervosa, mas a gente continuava conversando sem parar. Não transamos, mas dormimos abraçados, apesar do constrangimento. Foi uma noite surreal. Éramos dois estranhos que se conheciam profundamente. No dia seguinte, na hora da despedida, ele estava branco, quieto. Eu capotei no avião. Quando cheguei no aeroporto, entrei no meu carro e chorei até chegar em casa. No outro dia, eu continuei arrasada. Pedro me mandou uma mensagem perguntando: ‘Como você está?’ Achei um desaforo, porque para mim era claro que estava tudo acabado. Marquei uma sessão extra de terapia, mas nem conseguia falar, só chorava. Quando saí do consultório, tinha outro recadinho dele no meu telefone: ‘Quer jogar xadrez?’. Fui para casa correndo.E recomeçamos a conversar, como se nada tivesse acontecido! Decidi voltar a São Paulo, e me ofereci para ajudá-lo numa coisa que ele queria fazer: arrumar o jardim da casa da sua família, que ia ser vendida. Dessa vez, ele me pegou no aeroporto, fomos direto para a loja de plantas, passamos horas arrumando os canteiros. Quando acabamos, fomos para cozinha recolher tudo ... e aconteceu. Transamos pela primeira vez. Mas eu estava tensa, insegura com meu corpo. Eu, tímida, e ele, tarado, dizendo que me adorava do jeito que eu era. Voltamos para o meu hotel e não desgrudamos mais. A química era incrível. Um dia, ele me confessou: ‘Se alguém me dissesse que eu ia me apaixonar e sentir tesão por uma mulher gordinha, mais velha, eu não acreditaria. Precisei te encontrar para ver que esses preconceitos não têm nada a ver.’ Nosso namoro engatou, a gente viajava para se encontrar, mas ficava em hotéis, à parte do cotidiano. Eu não conhecia sua família. Ele sabia que eu tinha sido casada, mas eu ainda não havia dito nada sobre João, meu filho.
No final do ano de 2005, ele veio para o Sul passar as festas e as férias comigo. Não planejamos nada,mas Pedro não voltou para a casa dele. Veio morar comigo em Alvorada – no quintal de casa moravam meu filho e sua namorada. Sem saber de minhas mentiras, a namorada de João apareceu e disse, brincando: “Tu não sabe o que teu filho me aprontou”... Pedro ficou mudo e empalideceu. Assim que ela saiu, ele me olhou, em estado de choque. Contei tudo, abri o coração, mas a confiança estava abalada e eu sabia disso. Se eu havia omitido algo tão importante, o que mais viria pela frente? Ele me disse que sempre sentia que tinha algo de errado, desde a época que eu recusava ligar a câmera do Skype. Mas nunca chegamos a brigar por causa disso. E eu apostava que, na convivência, ele voltaria a confiar em mim– porque, no essencial, que era o meu amor por ele e minha visão de mundo, sempre fui sincera. E se menti ou omiti, foi por insegurança e medo de não ser aceita. Ele brinca que, durante o namoro virtual, eu o fisguei pela palavra.
Depois que todas as mentiras se dissiparam, tínhamos a vida real pela frente. Formado em marketing e decidido a morar comigo, ele tinha que procurar emprego. Eu teria de voltar ao trabalho. No início, eu me preocupava muito com a mudança do padrão de vida dele, pois minha casa é modesta. Mas nesse aspecto nunca tivemos problemas. Quando eu tocava nisso, Pedro apenas me dizia que nunca tinha sido tão feliz. Eu sabia que era verdade. O preconceito da família dele, porém, ainda hoje me magoa. Depois de uns cinco meses que morávamos juntos, minha sogra veio visitá-lo e disse ao Pedro algo que nunca esqueci: ‘Como você pôde largar o Jardim Paulista pelo Jardim Ângela (periferia pobre de São Paulo)?’ Quando Pedro me assumiu diante de toda família, no Natal de 2006, me pedindo em casamento publicamente, foi um choque para todos. As tias dele são hostis até hoje e o pai não me dirige a palavra. Até quando telefona em casa, não me cumprimenta, manda chamar o filho. Diz que ele é louco de ter casado comigo. Fui julgada apenas pelas aparências, nunca me deram a chance demonstrar quem eu sou.

Nosso relacionamento passou por muitos testes.Há quatro anos, fiquei doente, tive de me licenciar do trabalho e quando retornei fui demitida nas duas escolas em que atuava. Pedro tinha feito um curso de culinária, começamos a preparar comida para vender: lasanha, pizza, mocotó. A gente se virava, mas chegamos a ter a luz cortada por falta de dinheiro. Quando achei que nada podia piorar, no período de um ano, minha mãe e meu irmão adoeceram gravemente e precisaram muito de nós – meu irmão teve um câncer fulminante, fez uma cirurgia delicada e veio morar com a gente. Pedro cuidou dele até sua morte, que foi muito sofrida.
Nessa época, nosso tempo era dividido entre a venda dos congelados e o hospital. Tivemos ajuda financeira dos amigos, e apesar de tantas crises, nossa relação não se abalou. Tudo melhorou quando arrumei outro emprego, reativei o consultório e Pedro foi contratado numa empresa. Nesse ínterim, nasceram minhas duas netas e ele se tornou um ‘avô’ maravilhoso e coruja. Temos uma rotina dura de trabalho, mas nos damos muito bem. Vencemos as dificuldades porque conseguimos construir muita confiança e, naquilo que é fundamental para manter o amor vivo, sempre fomos honestos um com o outro. Apesar de eu ter aceito o seu pedido de casamento, não oficializamos. Ele continua insistindo. Já prometi que de 2014 não passa. Até lá, nosso romance completará 10 anos. Minha teoria é que hoje as relações não acontecem por duas razões: todos têm em mente um tipo de pessoa, não se abrem para conhecer gente fora do próprio padrão, e ninguém conversa. Nisso, a internet nos ajudou muito! Depois, a gente foi construindo nossa história, como qualquer casal que se ama e quer ficar junto."



Fonte>Revista Marie Claire
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