Quem sou eu?

Danka Maia é Escritora, Professora, mora no Rio de Janeiro e tem mais de vinte e cinco obras. Adora ler, e entende a escrita como a forma que o Destino lhe deu para se expressar. Ama sua família, amigos e animais. “Quando quero fugir escrevo, quando quero ser encontrada oro”.

Minha Família Me Arrancou da Minha Mãe!

Omar Najah El Ghazzaoui, 30 anos, viu o rosto da mãe, libanesa, pela primeira vez aos 9, em uma foto. Sem grandes explicações da família sobre a separação, o menino cresceu intrigado com o sumiço dela. Não sossegou enquanto não a encontrou. Depoimento a Letícia González

       
              
Fui criado por minha avó paterna e uma tia. Minha infância foi marcada por apertos financeiros, o descaso do meu pai e o mistério em torno da minha mãe. Não falávamos nem tínhamos nada que a lembrasse em casa. Nenhuma foto, lenço, roupa, nada. Aos 8 anos pedi uma explicação e minha avó deu a seguinte versão: meu pai, brasileiro, se apaixonou por ela durante uma viagem ao Líbano. Casaram por lá, para inveja dos homens que a disputavam, e vieram morar em Guarulhos. Como meu pai é descendente de árabes, conheço desde pequeno o fluxo de pessoas e notícias que há entre São Paulo e o Oriente Médio. Por essa ponte, explicou minha avó, os invejosos passaram a mandar notícias falsas a meus avós libaneses, que, acreditando que minha mãe sofria, vieram buscá-la apenas 11 meses depois do casamento. Meu pai tentou impedi-los, mas foi ameaçado de morte. Pela tradição, uma mulher árabe pode e deve criar os filhos do marido, mas nunca o contrário. Como a ideia da família era encontrar um novo marido para minha mãe, eu fui excluído do plano de fuga.
A primeira lembrança que tenho da minha mãe é de quando eu tinha 9 anos. Abri uma gaveta pequena do criado-mudo da minha tia e achei uma fotografia em preto e branco escondida. Era de uma moça de cabelos soltos que eu nunca tinha visto. Olhei intrigado para aquela desconhecida e estava com a foto na mão quando minha tia entrou no quarto. Fiquei mudo, esperando por uma bronca, mas recebi um abraço e um beijo. Perguntei: ‘Quem é?’. ‘É a sua mãe’, ela respondeu. Não sei dizer exatamente o que pensei na hora, mas lembro de sentir uma pontada rápida no coração. Minha tia falou ‘pode ficar para você’, e eu apertei a foto junto ao peito.
“Minha tia dizia que meu padrasto não me queria por perto. Se eu aparecesse, me mataria”
Pelos anos que se seguiram, minha mãe foi aquela foto, em que aparecia apenas da cintura para cima e vestia uma camisa de listras. Ela tinha 19 anos e, na minha cabeça, usava também calça jeans e tênis. Era assim que aparecia nos meus sonhos. Na época, se eu me metesse em alguma briga na escola ou me machucasse no treino de basquete, podia apostar que ia sonhar com ela. Bastava viver uma situação de medo durante o dia para vê-la à noite, de cabelos soltos e camisa listrada. Nosso encontro era sempre igual: eu corria até ela e ela me abraçava dizendo ‘vai ficar tudo bem, eu estou com você’. Aquilo me dava uma paz que só ia embora um tempo depois de eu acordar, quando caía na real e percebia que nada daquilo tinha acontecido.
A saída da escola era o momento em que eu mais sentia a falta dela. Lá estavam os meus colegas entrando nos carros de suas mães e indo embora, enquanto eu me dizia: ‘Podia ser comigo, né?’. Eu criava histórias na minha cabeça e, nelas, meus pais sempre vinham juntos me buscar. Além de marcar todas as fases da minha vida, a ausência de minha mãe deixou um rastro oficial: o nome dela não consta da certidão e nem da carteira de identidade.
Perto do meu aniversário de 15 anos, disse à minha tia que queria conhecer minha mãe. Sabíamos que ela ainda vivia no Líbano e havia se casado com um homem muito rico e poderoso, com quem teve três outros filhos. Minha tia colocou um grande empecilho: comentava-se na comunidade árabe que meu padrasto não me queria por perto e tinha prometido me matar se eu aparecesse por lá. Minha avó confirmou a história.
Em contrapartida, nessa época conheci uma irmã da minha mãe que morava em Guarulhos. Ela frequentava um clube árabe da cidade e minha tia me levou até lá para nos apresentar. Fiquei felicíssimo, pois não imaginava ter parentes dela por perto. Tirei fotos minhas, escrevi uma carta e pedi que fossem entregues à minha mãe. Sempre havia algum conhecido com viagem marcada para o Líbano que poderia levar meu envelope. Mas nunca recebi resposta. Perguntei o que minha mãe tinha achado das fotos e sua irmã respondeu apenas: ‘Ela gostou muito’. Quando quis saber o que ela me enviara, ouvi como resposta: ‘Muitos beijos’.

Aquilo não me satisfazia. Queria saber sobre a vida dela, a rotina que tinha com meus irmãos mais novos. Talvez ela tivesse dificuldade com o português, mas isso não explicava o seu silêncio. Se seu marido era um problema, ela poderia combinar um telefonema às escondidas à casa de sua irmã, onde eu esperaria. Cheguei a pensar que minha mãe não gostasse de mim, mas insisti com o pensamento de que, se ela não sentia minha falta, eu, ao menos, sentia a dela. Escrevi quatro cartas, todas sem resposta.
Durante um ano e meio, frequentei a casa dessa tia materna. Seus três filhos tinham idades parecidas com a minha e nos dávamos muito bem. Ficava para dormir à noite com eles e os acompanhava nos finais de semana, quando iam para um sítio. A convivência era tão gostosa que, depois desse tempo, desisti. Meus primos viviam com pai e mãe, tinham costumes árabes e não conheciam problemas de dinheiro. Isso contrastava com a minha vida a ponto de doer. Passei a evitá-los. Aceitava os convites que me faziam ao telefone mas, na hora marcada, não aparecia.

Quando penso na minha história, acho que senti tanta falta da minha mãe porque o meu pai também era ausente. Até a adolescência, eu o via ‘de vez em nunca’, quando ele ia à casa da minha avó e conversava só com ela. A mim, dizia ‘oi, tudo bem?’ de longe, sem beijo, abraço e sem nunca me chamar de ‘meu filho’. Desde pequeno, meu pai ficava livre de obrigações por ser o filho preferido de minha avó. Na juventude, enquanto os irmãos trabalhavam na fábrica de móveis da família, ele dormia até tarde, depois de noites inteiras de farra. Isso o tornou um homem sem responsabilidade, que trocava de carro todos os anos, mas nos deixava na mão quando passávamos por apertos financeiros. Quando ele quis se aproximar de mim, eu tinha 16 anos e já estava revoltado com a postura dele. Repeti o ano no colégio de propósito, para chamar a atenção dele. Ficava sentado na sala de aula sem fazer nada e, nos dias de prova, fazia questão de errar tudo. Isso não tinha nada a ver com o menino comportado que eu sempre fora. A relação com meu pai só melhorou depois dos meus 23 anos, quando voltei de uma temporada de trabalho na Venezuela. Eu já havia amadurecido e ele estava casado com outra mulher, que incentivou a nossa aproximação.
Nesse meio tempo, mudei com minha avó e minha tia para o interior de São Paulo quando a coisa ficou tão feia que pagar o aluguel se tornou difícil. Vivíamos na casa emprestada por um parente. Tentei começar a faculdade de educação física, mas só consegui pagar os dois primeiros meses. Quando meu tio me convidou para trabalhar fora do país, topei. Vendia jeans e fazia bicos como modelo na Venezuela, mas a saudade de casa apertou e a depressão me fez jogar as frustrações na comida. Voltei depois de um ano, com vários quilos a mais.
Na vida adulta, o vazio em volta de minha mãe só aumentou. No meu aniversário de 28 anos, algo aconteceu. Era fim do dia e eu estava indo buscar minha noiva no trabalho, a pé, quando meu telefone celular tocou. Estranhei a sequência enorme de números no visor e atendi. Do outro lado da linha, alguém disse: ‘Filho?’. Foi como se o tempo congelasse para mim naquela hora. Meu coração começou a bater forte e, de repente, a ligação caiu. Com o aparelho na mão, voltei à realidade. ‘Até parece que minha mãe vai ligar’, pensei. O telefone tocou de novo e era minha madrasta, me dando parabéns pela data. Concluí que a primeira chamada havia sido dela também.
Faltavam uns 40 metros para chegar e a Mari, hoje minha mulher, já me esperava na calçada. Meu telefone tocou novamente e o número esquisito reapareceu, mas, desta vez, a conexão não caiu. ‘Filho, ya habib, como você está?’. Era ela, minha mãe. Falava misturando palavras em português e árabe e chorava muito. Imediatamente, parei no ponto onde estava da calçada e comecei a chorar também. Mari me olhava de longe e pensou que eu acabara de perder o emprego, pois na época eu trabalhava na área de logística de uma empresa que estava em crise. Ela viu minhas pernas amolecerem e correu para me ajudar.
Sentado, eu só conseguia responder ‘mãe, eu te amo’. Foi uma dessas conversas confusas, em que cada um repete a mesma frase várias vezes. Uma prima, que falava português, estava ao lado dela para ajudar. Ela me traduzia: ‘Sua mãe nunca quis te deixar. Foi uma questão de vida ou morte. Ela pensa e reza por você todos os dias’. Depois de alguns segundos, voltava a dizer o mesmo. Desligamos e eu, ainda abalado, continuei repetindo para o telefone já mudo: ‘Eu te amo, eu te amo’.
Nos dias seguintes minha cabeça tentou fazer um ajuste de expectativas. Parei de achar que ela apareceria de carro na minha frente a qualquer momento para me convencer de que aquilo não passaria de um telefonema. Ao contrário do que eu imaginava, minha mãe tem a voz rouca. Minha prima explicou: ‘Sua mãe está te ligando porque o marido dela não está aqui’. Mas nos dias e meses seguintes, o silêncio voltou.
Neste ano, quando minha família por parte de mãe se aprontava para ir a três casamentos no Líbano, empolgado com a viagem, meu primo me ofereceu a passagem. ‘Mas só se for agora em julho, conosco’, disse. Fiquei muito angustiado. Ainda não tinha um ano de contrato e, por isso, recusei. Passei dias nervosos até que, numa manhã, o diretor da empresa sentou-se ao meu lado para um café. Ele sabia da minha história e perguntou como andavam os meus planos. Ao final da conversa, me deu um tapinha nas costas. ‘Pode ir. O seu caso é especial’, disse quando se levantou.
Quando contei à minha avó a grande novidade, ela não conseguiu disfarçar o desânimo. Não estava feliz com a viagem e isso era evidente, mas me neguei a discutir com uma senhora de 86 anos que, ainda por cima, sofre do coração. Ela e minha tia pareciam querer explicar algo antes da minha partida, e me ligavam mais que o habitual. Nas conversas, diziam que meu padrasto era um homem perigoso e que ouviria muitas mentiras quando eu estivesse por lá.
Finalmente embarquei. Não sabia o que esperar e, durante as 16 horas de avião, vi minha vida inteira passar diante dos meus olhos. Um primo e um tio me esperavam em Beirute e com eles fui até a cidade onde minha família mora. Uma tia me hospedou. Pela manhã iríamos à casa de minha avó. Ali, eu conheceria minha mãe.
Quando a hora chegou, eu quase não podia conter minha ansiedade. A casa da minha avó fica em um edifício com oito apartamentos, todos ocupados por parentes. No térreo, o mesmo tio que me levara à Venezuela administra um mercadinho. Ele correu para me abraçar e começou uma conversa ali mesmo, na calçada. Enquanto alguns primos desciam para me cumprimentar, uma fileira de mulheres se formou nas janelas para me ver. Eram minhas tias. De repente, todos que sorriam para mim começaram a chorar. Meu tio à minha frente, as mulheres na janela, todos. Eu não entendi o porquê até que, de repente, ouvi um choro atrás de mim, que vinha de dentro de um carro. Era minha mãe. No banco do carona, ela se apoiava no ombro de meu irmão e soluçava muito. Minha irmã estava no banco de trás.
A família do meu pai xingava e maltratava a minha mãe, mesmo ela estando grávida”
Empurrado pelos primos, abri a porta para ajudá-la a descer. Não cheguei a ver seu rosto pois, quando ela se virou e encostou sua mão na minha, perdi a consciência. Não cheguei a desmaiar, simplesmente não consigo lembrar o que aconteceu a partir daquele momento. Segundo me contaram, eu abracei minha mãe tão forte que a suspendi no ar. Continuei assim, sem soltá-la, por alguns minutos, até que meus primos me conduziram para a entrada do prédio. Subi todos os degraus agarrado a ela e só a soltei quando nós chegamos ao sofá, ainda guiados por parentes. Assim que se liberou, minha mãe me deu um beijo na testa. Nesse momento, sim, desmaiei.
Acordei com a cabeça no colo de minha mãe enquanto ela me fazia carinho. A fisionomia dela se parecia com a da foto, mas agora ela usava véu. Havia mais de 20 pessoas na casa e todas me olhavam num misto de expectativa e alegria. Fomos até a mesa — um verdadeiro banquete — ainda abraçados. Eu usava uma mão para comer e, com a outra, envolvia minha mãe. Mas durou pouco. Às 10h30, ela disse que tinha de sair, pois meu padrasto voltaria para almoçar em casa. Prometeu me ver depois, na casa onde eu estava hospedado. À tarde, ela já estava lá quando acordei de uma sesta. Choramos de novo ao nos vermos e, para espanto de suas irmãs, ela passou a falar em português. Às 17h30, disse de novo que precisava voltar para casa.
Os encontros cronometrados seguiram por dois dias, até que, no terceiro, ela pediu que eu fosse à sua casa. ‘Vamos conhecer seu padrasto’, foi a primeira coisa que me disse quando cheguei. Ele estava em uma das salas de seu palacete e vestia uma bata cinza e chinelos de couro, a mesma roupa que eu o veria usar nos dias seguintes. Quando me viu, lançou um olhar severo que só confirmou meu temor: aquele homem parecia mesmo querer me matar. Quando ele se levantou para me dar um abraço, interpretei o gesto como uma maneira de se aproximar para me cravar uma faca nas costas. Isso obviamente não aconteceu, mas não impediu que eu passasse a primeira noite na casa em claro.
Naquela semana, enquanto meus irmãos trabalhavam, eu ficava ao lado de minha mãe, conversando. Queria compensar 29 anos de ausência. Aos poucos, me convenci de que não seria assassinado pelo meu padrasto e fiquei mais à vontade. Eu via como minha mãe tratava seus filhos e queria que minha vida tivesse sido igual. Quando eu e meu irmão voltávamos dos passeios, ela nos esperava acordada e nos recebia com um beijo.
À noite, apesar de toda a felicidade, eu tinha pesadelos. Sonhava com minha mãe sendo maltratada no Brasil e com o meu padrasto me perseguindo. Quando acordava para tomar um copo d’água, via que ela estava encostada na porta, me olhando. Fazia isso todas as noites e explicava ‘eu preciso ver para saber que é verdade’. Eu vivia o exato oposto da minha infância: depois de um sonho ruim, ficava em paz quando voltava à realidade.

Ao longo dos dias, minha mãe começou a contar sua versão dos fatos. O casamento havia sido arranjado entre o pai dela e meu avô paterno, contra a sua vontade. Ela não queria se casar tão cedo, com 18 anos, pois tinha planos de estudar. Além disso, quando conheceu meu pai, não gostou dele. O pai dela desconsiderou seus argumentos. Queria as filhas casadas o mais cedo possível e achou seguro enviá-la ao Brasil com uma família que, na época, tinha dinheiro.
Meu pai estava sendo pressionado a se casar para acabar com a vida de bon vivant que levava. Concordou com o esquema, mas logo mudou de ideia. Disse à minha avó que se cansara da nova mulher, e isso foi suficiente para que ela passasse a tratá-la com desprezo. Mesmo grávida, minha mãe não foi poupada de humilhações e xingamentos. Minha avó acendia velas vermelhas pela casa e um dia a levou à praia para um ritual que parecia ser de magia negra. No mar, pessoas vestidas com roupas vermelhas cercavam minha mãe e enfiavam sua cabeça na água repetidas vezes. ‘Isso estava me deixando louca’, ela me disse. O pai mandou buscá-la depois de saber o martírio em que ela vivia, mas exigiu que o bebê (eu) ficasse. Para evitar o apego, proibiu minha mãe de me amamentar, ordem que ela descumpriu às escondidas.
No Líbano, uma nova vida a aguardava. Em poucos meses ela estava casada e cuidava de quatro filhos que não eram seus. Ao vê-la triste, o marido ofereceu mandar me buscar, mas ela recusou. Tinha medo de não poder me proteger caso houvesse uma briga. Sua intuição estava certa, pois, depois de alguns anos, a oferta se transformou em proibição. Com medo que eu quisesse os bens que ele comprava no nome dela, meu padrasto a proibiu de tentar contato.
Depois dessa viagem, não consigo mais sentir o vazio que sentia. Voltei outra pessoa do Líbano. Trabalho com programação e, quando um código que eu não conheço chega à minha mesa, não descanso até decifrá-lo. Eu não era assim. Essa confiança veio de minha mãe. Ela me disse: ‘Nunca tenha medo de fazer nada, porque o impossível era nós nos conhecermos e aconteceu’.”
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