Quem sou eu?

Danka Maia é Escritora, Professora, mora no Rio de Janeiro e tem mais de vinte e cinco obras. Adora ler, e entende a escrita como a forma que o Destino lhe deu para se expressar. Ama sua família, amigos e animais. “Quando quero fugir escrevo, quando quero ser encontrada oro”.

"Meu marido se veste de mulher"

A vida da artista plástica Eliana* mudou depois que seu parceiro virou crossdresser. Aqui, ela conta como esse hábito afeta o casamento de 25 anos — e a cabeça dela

       
Imagem do Google


          

"Já fizemos sexo com ele vestindo uma minissaia.Começamos a nos acariciar. Foi normal. É incrível, mas não tem fetiche aí"
Conheci meu marido em um curso de alemão nos anos 80. Sou arquiteta e queria estudar urbanismo na Alemanha. Ele pleiteava uma bolsa de estudos por lá, mas a vida nos levou por outros caminhos. Era uma sala pequena, com poucos alunos, e ele sempre chegava atrasado, derrubando tudo. Era atrapalhado e de cara me chamou a atenção por isso. Impossível não notar sua presença. Ainda hoje é bonito, 1,80 metro, grisalho, bem cuidado. Começamos a conversar casualmente e passei a dar carona até o estacionamento onde ele deixava o carro. Eu fazia o estilo hippie, andava de calça jeans, regata e rasteirinha. Ele estava sempre de terno porque era chefe de RH em uma empresa.
Em uma das primeiras caronas, ele me perguntou se eu tinha namorado. Respondi que não, ‘porque não queria nada sério naquele momento’, mas a verdade era que já estava atraída por ele. Foi paixão à primeira vista. Tinha tudo que eu queria em um homem: era sensível, fazia poesia, tocava violão. Era gentil, superculto e cavalheiro. E me paquerava com classe. Um dia, saindo do curso, o convidei para ir até a minha casa. Ele disse que não podia, mas me visitaria qualquer dia. Então, certa noite, estava saindo para uma festa e ele apareceu com um violão na porta da minha casa, sem avisar. Fomos para a festa de uns amigos meus e lá nada aconteceu. Quando foi me deixar em casa, decidi arriscar. Dei um beijo nele. Foi um beijo curto, mas bom. Na hora, pensei: ‘Ah, esse cara vai achar que eu sou muito avançada!’. Ficamos nos vendo durante uns três meses. Íamos ao cinema, ao teatro, mas sem sexo. Ele vinha de uma família moralista. Tínhamos um contato mais íntimo, mas não chegávamos aos finalmentes. Para mim, as coisas estavam seguindo um curso natural e queria investir nele. Então ele conseguiu a bolsa de estudos e ficou seis meses fora. Nós nos correspondemos por carta. Quando ele chegou, parecia que nunca estivemos separados. Nós nos casamos em um ano. A primeira transa aconteceu quando estávamos prestes a nos casar. Já tínhamos intimidade (brincávamos bastante de preliminares), foi bem natural. A transa foi tranquila, cheia de carinho.
Tivemos três filhos, que hoje são adultos. Durante os primeiros 25 anos de casamento, o relacionamento seguiu como qualquer outro: com altos e baixos. Nossa vida sexual sempre foi boa, frequente e criativa, mas sem nenhum fetiche nem fantasia. Depois desse tempo todo juntos, minha vontade de procurá-lo para transar foi diminuindo. Estava fazendo outra faculdade, com o foco na vida profissional e nos filhos. Deixei de prestar atenção no casamento. No dia em que completamos nossas bodas de prata, tivemos uma discussão por causa da minha falta de tesão. Meu marido disse que a vida dele estava péssima, um saco, que estava entediado. Falou que precisava repensar tudo e não queria mais morar na nossa casa. Fez as malas e foi para um hotel. Ele estava irritado. Não tive como impedi-lo. Fiquei desesperada. Meus filhos ainda moravam em casa e tentaram me consolar. Não queria mostrar o quanto estava abalada. Sozinha, me tranquei no quarto e chorei por horas. Eu me perguntava o que tinha feito para deixá-lo tão furioso. Não era possível que só a rotina o tivesse perturbado a ponto de sair de casa daquela forma. Desconfiei que ele tinha arrumado outra.
Fiquei ligando no celular dele durante toda a noite. Quando resolveu falar comigo, pediu que o deixasse em paz. Com muito ­custo, consegui marcar uma conversa para o dia seguinte. Nós nos encontramos no hotel e ele disse: ‘Vou te contar por que não aguento mais: gosto de me vestir de mulher e sei que é inaceitável. Não quero te fazer sofrer. É melhor me afastar. Não sou homossexual, gosto de mulher, de você’. Senti um enorme alívio. Queria ficar com ele e o importante era tê-lo ao meu lado. Ele me amava, tudo podia se resolver. Virei para ele e disse: ‘É isso? Vamos embora para casa’. Para mim, seria estranho desistir de uma vida inteira de cumplicidade por causa desse desejo.
Depois que ele voltou para casa, a sensação de alívio foi passando e as dúvidas começaram a brotar. Por mais cabeça aberta que eu fosse, não conhecia o universo dos crossdressers e não sabia bem o limite entre a vontade de se travestir e a homossexualidade. Quando comentei minhas dúvidas com ele, me contou que tinha feito muitas pesquisas a respeito e foi esclarecendo meus pensamentos. Disse que a primeira coisa que passou pela mente dele quando surgiu essa vontade foi: ‘Sou homossexual’. Mas depois entendeu que aquela era apenas uma forma de se expressar, que tinha a ver apenas com as roupas, os sapatos, a maquiagem, os adereços e acessórios — enfim, com caracterização feminina. Também disse que nunca quis ficar com um homem. Ele me contou que não tinha sentido vontade de se montar na vida. E que esse desejo apareceu no nada. Não conseguia encontrar nenhum fato que pudesse ter desencadeado esse sentimento tão forte. Era como se, ao se montar, ele acalmasse uma angústia ou um tormento interno.

"No começo, meu marido me dava roupas espalhafatosas, que nunca usei. Hoje, brincamos que ele virou boneca porque não
virei Barbie"
Durante essas conversas, fui percebendo que ele tinha mais dúvidas do que eu. ‘Por que bloqueei isso a vida toda?’, ‘Por que surgiu assim, do nada?’ Esses questionamentos o deprimiam. Ao ver que ele estava mergulhado em pensamentos e que estava sendo sincero comigo, minha insegurança com relação ao rumo da nossa relação foi passando. Comecei a observar mais o comportamento dele e cheguei à conclusão (só minha) de que ele tem uma compulsão. Ele passa dias usando roupas de homem, até que vai ficando inquieto, irritado, e tem de colocar ao menos uma peça feminina, nem que seja um sapato de salto alto. No começo, ele se montava mais. Foi uma explosão: tudo era intenso e proibido. Hoje, ele raramente usa o figurino de mulher completo. Veste algumas peças, uma vez por semana, e quase não usa maquiagem.
A primeira vez em que ele se vestiu de mulher para mim, achei engraçado. Ele me avisou que ia se montar para eu ver e foi se trocar. Quando voltou, caí na risada. Ele fez uma produção tosca: colocou uma peruca, uma roupa super-Barbie, cheia de brilhos… Eu digo que, como mulheres, temos gostos absolutamente diferentes. Eu, super-hippie, e ‘ela’, perua, gosta de brilho, salto, maquiagem. Não fiquei chocada porque ele tinha me avisado e, afinal de contas, era meu marido por baixo daquilo tudo. É pela pessoa dele que sou apaixonada: com roupa de homem, de mulher, pelado.
Depois dessa revelação, nossa vida sexual melhorou. Antes, era uma coisa meio afobada, parecia que ele tinha pressa. Hoje, o sexo é mais tranquilo e carinhoso. Acho que ele não sente mais aquela pressão de ‘ser machão’, de ter a melhor performance do mundo. Mas não posso dizer que convivo superbem com isso. Ele se veste muito melhor quando está de ‘sapo’, como eles chamam quando estão desmontados, e é claro que eu prefiro vê-lo assim. Por mais que eu leia a respeito, me informe, tem horas que não entendo essa vontade. Penso que aquilo não faz o menor sentido. Não sei muito como classificar o crossdressing. Não é algo sexual. Já fizemos sexo com ele ‘montado’ — não foi planejado, ele estava usando uma minissaia e de repente começamos a nos acariciar e, por incrível que pareça, a transa não foi diferente. Aconteceu tudo da mesma forma, não tem um fetiche aí. Já tentei achar explicações na infância, nos traumas. Posso supor qualquer coisa, mas não encontrei nenhum argumento que me satisfaça. Tento mostrar para ele que encaro a situação com leveza, não quero deixá-lo ainda mais confuso ou culpado.
Quando a gente se conheceu, ele me dava roupas espalhafatosas, sapatos de salto. Eu olhava aquilo e falava: ‘Nunca vou usar’. Hoje, brincamos dizendo que, como não cumpri a fantasia dele de ser ‘Barbie’, ele virou boneca. Já comprei roupas femininas para ele como um agrado e também costumamos fazer compras juntos, mas, como temos gostos realmente diferentes, nunca usamos as roupas um do outro. Ele nunca usou minha lingerie, por exemplo.
Alguns meses depois, ele me contou que estava trocando e-mails com outros crossdressers e que existiam clubes de encontros entre eles. Tudo era feito sob sigilo. A maioria das mulheres nem imaginava que os maridos se vestiam de mulher. Eles não tinham coragem de contar. Começamos a frequentar alguns encontros pelo país. Ele sempre fez questão de me levar junto. Pouquíssimas mulheres participavam. Íamos para um hotel-fazenda. Lá, os homens andavam montados o dia todo. Cheguei a propor que acontecessem conversas mais profundas, que se abrissem para falar sobre angústias. Ninguém parecia interessado. As poucas mulheres que participavam também não se mostravam abertas para discussões. Fiquei surpresa ao constatar que festas de crossdressers são supercomportadas! Eles ficam quietinhos, conversando, talvez porque não sabem se movimentar muito com aquelas roupas e saltos altos!
Um ano depois da revelação, ele quis contar para nossos filhos adultos, que não moravam mais conosco. Fui contra. Ele disse que eles poderiam ficar sabendo por outras pessoas ou na internet — ele fazia um diário virtual e postava fotos vestido de mulher sob outra identidade. Também disse que não poderia esconder isso, já que sempre teve uma relação com os filhos baseada na verdade. Chamou um por um. Não participei das conversas. A reação foi ótima. Disseram que, se o pai precisava daquilo para ser feliz, eles aceitariam. Não sei se já viram o site do pai, e ele nunca apareceu de mulher para eles. Também contamos aos amigos mais íntimos e ninguém se afastou. Antes de se descobrir, ele trabalhava sozinho, como consultor, então não teve de lidar com colegas.
Minha maior angústia é a vontade de protegê-lo. Não quero que as pessoas riam, apontem nem xinguem. Ninguém sabe como ele é culto, inteligente e divertido. Já saí­mos com ele montado para bares e restaurantes e nada aconteceu, mas fico sempre preocupada. Quando peço para ele não se montar para sair, ele diz que estou sendo tão preconceituosa quanto a sociedade, que ele esperava que eu fosse diferente. Respondo que sou diferente em partes; afinal, também carrego valores da sociedade.
Quando ele está em crise, fazendo aqueles questionamentos todos, me afasto ou fico por perto sem falar nada, só ouvindo e apoiando, mostrando que o amo e estou ao seu lado para o que der e vier. Nós dois fazemos análise com profissionais diferentes, mas é difícil achar alguém que entenda sobre crossdressing de verdade. Os psicólogos levavam sempre para o lado da homossexualidade, que não é o caso. Na minha terapia, esse não é o foco principal, por incrível que pareça. Mas é claro que também falamos disso; afinal, faz parte da minha vida. Ele é superengajado, discute vários assuntos do universo crossdresser no site, tem um público de leitores fiéis, porque pesquisa muito a respeito. A verdade é que estamos aprendendo juntos. Nenhum de nós entende o assunto muito bem, mas nos apoiamos. Hoje, nosso relacionamento é mais profundo do que nunca.”
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